segunda-feira, 1 de março de 2010

À sombra do chão

A cidade estava bonita. E como tudo, era ilusão e pó. O movimento veloz do ônibus nas ruas da madrugada, quase sem trânsito. As escuridões aninhavam as sujeiras, os restos, os lixos da cidade. As ruas pequenas e escuras escondiam as prostitutas com coração de pedra; os travestis com olhos de pedra; as ruas escuras viciadas, em pedras.

O pó correndo com o vento, nas sombras escuras das árvores à meia-noite.

As luzes pequenas, amarelas, maquilavam os policiais corruptos, de sorriso amarelo para as putas, os travecos, para quem fosse dono de uma nota de cinqüenta reais, amarela.

A cidade era silêncio. E um tiro de suspiro rarefeito soou no ar como a canção monótona de uma carreira pública. Pública e reta, se desejar pior.

A nota dissonante deitou num sonho um quase corpo de uma quase mulher.

Sentia o espírito leve, desprendendo-se, voando até.

Por dentro do corpo, corria a eternidade fugaz, o toque veloz da morte, do pó a retornar.

Tudo isso num instante.

Um instante fotografado da janela do ônibus

Ali mesmo, na folha que pousou no chão, e construiu debaixo de si, uma sombra.

Ali o ladrão? Ali o destino? Ali o segredo? Num momento?

Um momento.

...

...

...

Ali mesmo, na folha que pousou no chão, e construiu debaixo de si, uma sombra.

Ali, debaixo de si, na sombra.

Ali o ladrão! Ali o Destino! Ali os segredos todos! Num momento...

O relógio, a vida, o polícia e o ladrão, tudo num momento.

Ali mesmo, na folha que pousou no chão, e construiu debaixo de si, uma sombra.

Desenhavam o garoto movimentos teatrais. Conscientes. Desenvolvia-se em gestos pré-fabricados, como numa eterna cena de cinema. Os dedos correndo em direção ao interruptor, o indicador apontado, como a encenar novamente o toque divino da criação, nos altos do céu, no teto da capela Sistina. Prazer maior ainda em desdizer Dele: rodopiava como borboleta; os cabelos levemente subiram e desceram, pesando na cabeça, uma única vez; punha os olhos no botão; o braço que acompanhara o voltarete, achara em seguida a pele de seu par num clique. Clique!.Disse:

_ Faça-se a escuridão.

E o quarto enegreceu de temor perante as forças da física e da eletricidade.

Mancebo e velho, jovem de idade, vinte e cinco anos, gasto das noites não dormidas, dos conhaques mal envelhecidos, dos vinhos baratos e dos cigarros americanos, de nomes americanos, de tabacos americanos, câncer brasileiro. Devaneando, o coitado, deitado em lençóis sujos de um mês - marcas de café, de pé, de sexo - permanecia e ia-se embora.

Enojava-se do silêncio tão logo se surpreendia envolto em sua harmoniosa orquestra.

Tateava de lembrança os objetos do quarto. Pegava um vinil: Billie Holliday, o primeiro na fileira de discos. Como a ponto de agulha o tempo todo. Como a idéia de estar vivo e estar devidamente pronto a morrer, a qualquer hora, a toda hora, a mesma hora, hora, hora, hora, hora.....

_ Morri! À alegria viva dos condenados à morte, dos que também a tocaram! Viva! Viva!

E começava o monólogo louco, um pouco bêbado, um pouco mais no copo, ainda na mão: presente a si próprio, esquecido entre os dedos na saída do bar.

_ Sim!!! Eu, morto!

O canto de sua voz falando vinha ensaiado do gole que o antecedesse. Vodka e Coca-Cola. Reconhecera só ali a bebida. E seguia em seu ato de ladainha de todos os dias derradeiro:

_ Estou morto! Morto de idéias! Não que não as tenha. Tenho. Todas. Aqui !

E batia o indicador criativo na cuca. Indica a dor porque é onde bate que ela se está.

Toc!! Toc! Toc? Toc...

Ninguém respondia. Respondia ele:

_ Ninguém responde! Eu não respondo. As idéias me gritam e arranham no meu cérebro, mas as aranhas dos meus dedos enfeitam de teia a cadeia do punho fechado, do muro erguido e das chaves do toque.

Toca o jazz, trilha sonora da vida sinuosa, sintomaticamente escolhida a dedo, sem criatividade alguma, sem improviso algum, sem sentimento que seja, a não ser a saudade de repetir o que não se repete. Sim ! Vitrola maldita! Viola-me o dito. Veja como eu pego tua agulha! Veja !, como a trago para as bordas do teu prato faminto, de som, e repito, e repito e repito. O que nunca repete?