quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Achava tolo e injusto o posicionamento do Sol. Debruçado sobre a amurada do terraço, tomando sol nos braços que o alcançavam além da cobertura quente de eternite, detestava o Sol por haver de buscá-lo em migalhas. Gostava de fumar e estar ao sol, sentado, consumido e tocado pelo seu toque plúmbeo, que lhe caía como tonelada sobre a pele branca, sobre o cabelo cheio, penetrando como água por entre os fios, e por fim, sobre a cabeça, fervendo como um caldeirão de crânio exumado na época das trevas, fervendo como se fosse a noite e a chama da fogueira da inquisição que lhe cobrissem os pecados no fogo brando do aconchego sossegado da culpa.
Se houvesse, e para ele deveria haver, uma clarabóia em seu cérebro abriria quando bem quisesse e receberia em seu rosto e em todo o seu corpo o brilho e o castigo do sol, o arco-íris cinzento dos brilhos dos pingos castigando-o de chuva. Uma clarabóia de passagem pequena como uma goteira que o inundasse de tudo que venha dos céus. Passagem miúda, pois sem dúvida maior fosse, por ela tentaria escapar, fugir. Nunca deixara de tentar, e uma fenda é sempre o rosto de uma curiosidade perigosa e deliciosa de pôr as mãos, de recostar o olho e descobrir o que se esconde quer seja na escuridão, quer seja na luz cega, nas fechaduras ou nos muros. Tudo passagem para mundos e dimensões de além, do outro, de si, de escuridão e de luzes.
E seus olhos eram fendas, por onde vazava um reluzente terror e taciturnos pesadelos. Diante de outros, distante de si frente ao espelho, sabia que saía por aqueles dois réus confessos e já quase decapitados, todas essas luzes e sombras que esperava nos muros do mundo, nos outros olhos que fitavam os seus, ou ainda mais nos que lhe fugiam, empurrando o rosto para o lado, mentindo uma distração, uma flor, um pássaro, um mendigo enfartando de álcool ao sol do meio dia na avenida mais movimentada da cidade. Tremia de horror.

Repartição

Ia andando em frente apenas . Envolto em escuridão. Incontáveis passos persegui ainda uma luz que cintilava longe.
Cheguei e ceguei e conforme fui recobrando a ilusão dos olhos, construí um escritório ao meu redor. Era meio egotista: talvez eu até já estivesse ali.
Na portaria tentei identificar-me. Fui dispensado de tal tarefa por um porteiro que escondia o rosto. Ao meu ver:
_ Ah... é o senhor! Entre...entre..
Bom o porteiro. Pelo que vi um senhor já, de bigodes, camisa de botão, gravata com nó maldado, baixa estatura, um ar subalterno que a ele cabia muito bem.
Bom o porteiro. Se me obriga a dizer quem sou, já ali acabava a história, que não saberia tal resposta.
Por fim entrei.
Dois passos mais e o porteiro coçando a garganta advertiu-me:
_ Deve retirar sua senha senhor. A fila é aquela. E apontou-me uma direção qualquer.
Sem saber porque peguei um número, o 22, e dirigi-me ao fim da fila, a única que eu divisava por ali.
Contradizendo o meu número, uma centena de pessoas aguardava.
Comecei eu também a esperar sei lá o quê...
Estudando o local a minha melhor analogia de reconhecimento me trazia à mente uma repartição pública. E uma repartição pública estava lá.
Pessoas iam e vinham desordenadamente de um lado para o outro, sem parar, com papéis vários nas mãos. Conversavam e pareciam buscar soluções inatingíveis.
Outros arrastavam-se, senão pra lugar nenhum, pra uma aposentadoria magra e arredia.
O lugar era dividido em setores que cresciam através de vidros sem reflexo.
O Setor de Idéias estava ocupado por homens bebendo café expresso e agindo desesperadamente: não paravam de chegar novos formulários, notas musicais, poemas, planos...
Os homens suavam e pareciam correr contra o tempo. A todo segundo novas idéias surgiam e elas necessitavam catalogar, revisar, pôr em prática às vezes. Os computadores estavam a mil.
Ao lado ficava o Setor de Crenças, Fé e afins. Lá dentro um homem gordo tinha a boca aberta, os olhos fechados, o corpo largado numa poltrona confortável.
Permaneci olhando o homem gordo algum tempo. Mais precisamente até o instante em que o porteiro abandonou seu posto e veio até mim. Disse:
_ Esse está assim há uma eternidade. Não faz nada o inútil. Parece que morreu!
Não respondi absolutamente nada...
Porteiros têm a capacidade de serem inconvenientes, de falar a quem nada pergunta, como os velhos têm.
Vendo frustrada sua chateação voltou ao seu dever. Melhor ser grosseiro que ser capturado pela carência de assunto d'um porteiro.
Olhei novamente o homem gordo. Uma mosca saiu rodopiando brincalhona de dentro daquela boca escancarada cheia de dentes, esperando a ...
É. Estava morto deveras.
Deixei pra lá...
No setor financeiro uma senhora batia P-r-e-g-u-i-ç-o-s-a-m-e-n-t-e a máquina de datilografar. Seu cabelo era nitidamente feio e tingido.
Talvez não tão nitidamente: aquilo mais parecia uma peruca feita com pêlos de gato.
Por detrás dos óculos amarelados e grossos, ela fitou-me reprovativamente. Parou de bater à máquina, tomou do seu cigarro que descansava no cinzeiro ao seu lado.
Discou no telefone antigo, daqueles de roleta, aguardou um pouquinho
_ Alô?!
E pelo visto não ia parar mais de falar. Nunca mais. A mexeriqueira...
Será que era de mim que falava?
E daí também? Carente ali era o porteiro...
Olhei pra ele. Ele olhou pra mim.
Virei a cara. Melhor a cara que a noite inteira, a saber, a ouvir, do preço do leite; de seus quinze filhos pequenos e doentes, com melecas escorrendo dos narizes;
da esposa acabada pela idade e pela gravidez do décimo sexto ( que será dessa vez? Um menino? Uma menina? Um coelho?)
Nunca! Nunca fale com um porteiro! Nunca!
Só bom dia, boa tarde, boa noite, variando com o horário. Como não sabia que horas eram quando ali cheguei , nada disse.
Esqueçamos o pobre porteiro. Não que o conheça, ou que tenha dó dele, mas porteiros normalmente são pobres.
A fila todo esse tempo que fiquei a refletir permaneceu imóvel.
Não sabia o que fazia ali, mas não podia esperar pra sempre. Procurei um relógio. Há sempre um grande relógio redondo dependurado nas paredes das repartições públicas.
Ali não havia.
A divisão de Noção de Tempo & Espaço, entretanto, existia.
Uma bagunça. Papéis e mais papéis atulhavam-se. Não dava pra ver se existiam funcionários trabalhando. A papelada faltava pouco derramar seção afora.
Um garotinho saiu de lá não sei por onde. Ofegante e apressado ia passando por mim quando o inquiri sobre as horas. Não sabia.
Garotos... Sempre fazendo tudo errado. Como era inútil deixei-o ir.
A fila parada tinha a impressão que crescia à minha frente. Estiquei o pescoço, numa tentativa de decifrar tamanha estagnação. Não via sequer o fim daquele amontoado de gente.
Diabos! E eu perdendo tempo!
Mesmo sem consciência de quem se é, ou do que se está fazendo, ou do que se quer, tempo, meu caro, é dinheiro. E dinheiro não se joga fora.
No Setor de Vícios alguns funcionários limpavam a mesa sutilmente, jogando tudo ao chão. Enquanto um deles balançava os dados nas mãos, fechadas em formato de concha.
Um outro distribuía bebidas, ao mesmo tempo em que chupava um cigarro pendurado no canto da boca. Um outro coçava o nariz...
E a fila parada!
Até quando? Nem um passo sequer!
Quanto tempo já se havia transcorrido desde que ali chegara.
Não aguentava mais. Ia acender eu também um cigarro quando a coçadinha irritante de garganta do porteiro atingiu irritantemente meus ouvidos.
Olhei...
Apontou uma plaqueta velha: PROIBIDO FUMAR!
Ah! Isso era demais!
Guardei contrariado o meu cigarro, amassando-o no bolso da camisa.
Malditas sejam as repartições públicas!
Fui informar-me com o senhor que me precedia na fila.
Espanto foi tudo que consegui: o sujeito tinha a minha cara! As minhas roupas!
Fiquei imóvel por um momento. Se bem que já estava imóvel, há tempos indianos .
Sendo assim, corrijo-me : permaneci imóvel, somente.
A fila era composta por mim, repetido mil vezes!
Ora! Comigo nunca tive escrúpulo algum. Logo, tentei furar a fila. Todos me imitaram e instalou-se um caos.
Comecei a ficar confuso e impaciente de maneira insuportável.
Todos aqueles eus invadiam o guichê, que visionei pela primeira vez desde que ali chegara.
Foi com enorme esforço que atingi meu objetivo. Depois de cotoveladas e golpes desleais que me feriram o estômago, os rins e que me sangraram a boca.
Não apenas eu, mas os outros eus também, que eu revidei. Talvez tenha até mesmo começado a violência. Aqueles sujeitinhos detestáveis iguais a mim pareciam imitar todos os meus movimentos.
Depois dessa falta de respeito - que me era costumeira -, espanto maior ainda:
Deparei-me comigo mesmo do outro lado do balcão!
Por isso aquela fila não andava...
Incompetente!
Perguntei desesperado a mim mesmo:
_ Quem é você? Que lugar é esse? O que se está aguardando?
O bom porteiro veio me amparar no meu quase estado de choque e guiou-me até a Seção de Crises Existenciais.
Ele puxou-me uma cadeira, prometeu um cafezinho novo do Setor de Assuntos Gástricos e avisou-me que aquilo poderia demorar um pouquinho.
Dentro da mesma seção um eu que tinha criado raízes e outro envolto em teias de aranha fariam-me companhia, deduzi.
Bom porteiro aquele. Graças a deus não quis conversar, tornar tal espera ainda mais cansativa...
Uma tosse seca e única tossiu. Acho que veio do Setor de Crenças, Fé e afins. Não... Impossível... Uma mosca volteou a lâmpada nesse instante
...tschhh...
Encostou-se à lâmpada, a mosca idiota
De dentro da Seção de Crises Existenciais ainda consegui, quase que magicamente, a atenção do eu que estava no guichê:
_ Pode ao menos dizer-me que horas são? Perguntei-me.
Respondi-me com meu tom de voz mais desdenhoso:
_ Desculpe senhor. O Setor de Questionamentos Filosóficos fica no saguão superior. Apanhe o formulário roxo com bolinhas amarelas e suba as escadas à sua direita.


Na procuradoria, rapazes com caras de advogados recém saídos da prisão, procuravam.
Olhavam sobre e sob a mesa com olhar curioso. Olhos de galinha ciscando minhocas.
Funeral de poeta visionário impressiona poeta cético e supersticioso.(nota de jornal que publica diariamente a sua última edição, sua última primavera)

Silêncio noturno,
soturno do poeta.

O outono (ou inverno),
monótono, monocromo,

trás a festa imodesta,
(com orquestras, cornetas,
liláses, sopros de trombeta,
sonatas d'um maestro antiprofeta),

traz, à testa, a besta,
sons de feras, capetas
vorazes corpos de poeta:

Sonetos gritos ante o funesto!

.................,........., ......................................................!
.................,.........., ....................................................!
................................................ ...
................................................ ...

.................,.....,......,...................................................!
...................................,............. ...
................................................ ...
................................................ ...

.....................................,..........................................!
....................................,............ ...
................................................ ...

...............................................................................!
................................................ ...
................................................ ...

Silêncio soturno,
noturno, de poeta.

Abstêmio (ou interregno?),
entre epitáfio e sirene

(sóóóó, sóóóó, sóóóó...)

Assaz silêncio'inda resta...
Nos restam, flores pretas,
vivas!, louros!, -- te enfeita!,
põe gravata!, faixa preta!.

Faz silêncio! Vê se empresta,
tons de dor, de tristeza,
aos vivazes olhos pretos
que na caixa jazem, abertos.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Fazem certo em vigiar,
a vigília ainda perto
nem descansa, nem desfaz,
o poeta, os olhos quietos.

O poeta é morto, por decerto é.
O poeta é morto, por decreto é.

Silêncio noturno,
soturno do poeta,

A absconsa mal alumia,
mas no pouco lume via,
absconso, irreal, dormia,
secreto visual zumbi nos olhos mortos e vivos do poeta.

Viva! As moscas zumbindo sobre o cádaver exposto!
Viva! As moças chorando sobre os cadernos brancos!
Viva! As louças, sândalos, cobres, ternos e bancos!
Viva! As loucas delirando sob a morte, os fatos!

Terão seu prato, as moscas.
Darão seu pranto, as moças.
Levarão tanto, tantos bancos.
Serão santas, as loucas...


Eu? ...morro que só.
E depois? Verão....

O Silêncio noturno!
Soturno do poeta!

(08 de setembro de 2007)

"Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Nada; entretanto, ouve com prazer uma sonata do mestre. O gato, que nunca leu Kant, é talvez um animal metafísico"

Questão

questão do vento
o desalento aqui chegar...
assim, meio sorrateiro,
que um dia inteiro
não ia olhar.

questão de sangue...
que se extinga
essa míngua
adeus, menina,
é deixar sangrar

questão de sorte...
só mais um corte...
tem mais que ir
pois, já se foi!
não tem nós dois!
nem tem mais pra vir...

questão de tempo
um desalento acalentar...
não tem mais coro
todo esse choro:
é soro e sonhar

adeusamor
amoradeus
.
.
.

Maconha

É mais concreta a beleza
azul da fumaça que agora
acaricia meus dedos,

E mais abstrata a estrela,
a luz escassa dessas horas,
a cada dia em meus medos

Que a Morte que me resta,
Que a Vida que me sobra...

É mais fugaz o Destino,
mais voraz o Silêncio,
mas em paz o furacão...

E mais eterno o desatino
enfermo e efêmero,
no que penso...

Que a Vida que me resta!
Que a Morte que me sobra!...
23/04/05

Delírio

Não sei se deliro
ou por que sonho
ou por que desperto
ou por que choro
ou por que sorrio
Sei que uma coisa assim:
Sem ser, sem ver
me percorreu, me atravessou

Não sei a noite embriagada...
Não seria a morte aconchegante?
Não sei ...
Não sei se o vento,...

Alguma coisa por mim passou,
Mesmo o vento que se esvai
Mesmo o tempo que se rompe
Não sou o mesmo.
Eu não sou nada do que eu era

Um segundo atrás.
Um segundo a mais...
Meu relógio é viciado
Conta, conta à conta
gotas de sol a sol
e haja paracetamol
pra tanta cabeça, são
três da tarde, invade
o horário de verão
durma tarde, acorde cedo
Conta as gotas do relógio
ponta à ponta, bom negócio
energia resguardada, ócio
Bom negócio esse destroço
que corre, corre...corro
morro acima, contra o tempo
invento um tempo de nós dois
deixa pra depois o furacãO
Deixa pra depois a desilusão
que hoje mesmo com chuva, ajuda
o sol a dar sol, somente cubra
gota a gota a cura da febre
é tempo dos doentes de fé
de pé gritarem, contarem
as gotas do remédio do veneno
desse pequeno poço moreno
desse corpo fundo ouço
a dança do sereno me gripar

Meu pano jeans

Não largo a rima
Não largo o fumo
Alargo a ferida
Eu aumento o furo

Desse centavo, furado
do meu bolso, furado
do meu pano jeans
do meu pano jeans
olha aí
é o meu pano jeans

Não largo a menina
E nem desço do muro
Eu trago da vida
Muito dos murmúrios

Desse malandro que cantando

vai dando nó em pinga e letra
vai dando voltas no planeta
Se
melindrando a mesma nota
De quem viola um céu de estrelas
Com poesia sobre a vida
de quem viveu viveu
quem morreu morreu
ai meu deus meu deus
quem morreu morreu
se é por falta de adeus
há deus, adeus, adeus
quem morreu morreu
não foi culpa d'eu
nem culpa de deus
quem morreu morreu
Anda tão posto nas bocas o gosto roto das Idéias
que esses lábios andam engolindo furacões aos beijos...
Mórbidos, sórdidos, tórridos de uma pasmaceira inigualável, inabalável
inexprimível
senão pelas linhas raquíticas e trêmulas
das mãos d'um velho esmoleiro

O diabo

é o diabo, eu o conheço...
ele me conhece bem
melhor que eu

é o diabo mascarado,
mas esse eu conheço
e ele me conhece bem
melhor que eu
melhor que deus

é o diabo enrabado
de rabo preso com diabo
e é mais pregado do que eu...
é mais prezado do que deus
é o diabo, eu o conheço
ele me conhece bem
melhor que eu
melhor que deus
melhor que nós
melhor que o espelho ou a cruz
que jesus ou maria
do que a noite do que o dia
do que quaisquer bruxarias
é o diabo, eu o conheço
ele me conhece
bem melhor
que eu...
melhor que deus
é o diabo
amém:
é o diabo!
Não uso relógio: gosto dos pulsos livres das fracassadas tentativas de suicídio.
O que roda roda roda roda em torno de si e nunca cansa e nunca sai do lugar?
O psicanalista,que não fala nunca,mas gesticula os mirrados braços de ponteiro todas as horas. As erradas, as certas, as que se atrasam e as que fogem. As horas que crescem e as que morrem. E ele lá:sentado na cadeira. E você ,assim, deitando, no tempo de consulta,pensando em dormir... Na vida cada vez mais curta dos bezerros!
E por hoje o nosso tempo acabou.
É tudo que você quer ouvir?
Contrariem os loucos lazarentos todos!
E por hoje, o nosso tempo acabou...