domingo, 11 de abril de 2010

O resquício do rio raso

Imagine você que meu corpo esteja composto de pequenos canais, semelhante a uma rede de esgotos. Logo pensará que isto é uma metáfora para as minhas veias e que com isso quero dizer estar imundo o meu sangue.

Imundo estou todo eu.

Há terra sob minhas unhas, meus dentes estão amarelos, e deles falarei depois, mais longamente. Meus cabelos secam e empalidecem. Minha pele resseca e minha boca seca, sequer diz.

Calada assim, ela mente.

E eu finjo minha sinceridade com o olhar de um simplório culpado.

Hei de duvidar, contudo de tudo isso. E eu mesmo não me culpo.

Embora parte, entretanto alheio à minha vontade, dentro de mim, encarcerado, vive alguém do tamanho exato dum pequeno demônio.

Não posso dizer que seja mesmo mau. Nem bem digo que me faça.

Dentro de mim ele passeia e se ri.

Quando minto, ele estica o braço, atravessa-o por minha garganta como um soco, de baixo pra cima, que vai explodir no teto do meu corpo. E assim ele passeia dentro de mim, com violência.

Não contente, após o golpe estrondoso, seus dedos se abrem e da minha nuca até a altura de meus olhos ele arranha com suas unhas, roídas e sangradas, com pontas mal comidas. E assim ele se ri dentro de mim, com benevolência.

Não contente, quando digo uma verdade ele encolhe o braço e fazendo uma cadeia com seus dedos ossudos e tortos à maneira de um garfo vítima de charlatanismo, abraça meu coração, quase acariciando-o, mesmo que o fizesse gelar esse toque traiçoeiro.

Logo o abraço doía e doía, e o coração sofria um aperto e outro aperto.

O sangue imundo se inundava e, assim, meu corpo latejava, ele todo um coração apertado por falanges falácias.

Logo pensará que isto é uma metáfora para o conflito entre razão e emoção e que com isso quero dizer estar vagando minha razão e sofrendo de qualquer tipo de paixão, concomitantemente.

Talvez esteja.

Talvez esteja mentindo.

O fato é que o cansaço exaustivo me dói por baixo dos pés, quando ele estica os dele e pisa os meus passos e os torna duas vezes pesado e preso.

Que me dói as costas quando ele se dependura em meu pescoço e me força carregá-lo, retirando-me além disso o ar sujo que me resta.

Está aqui ainda o pequeno diabo, usa meus dedos como luva e traz-me ânsia às articulações e parece estar queimando com o desespero a parte de baixo das minhas próprias unhas, roídas e sangradas.

É necessário parar por agora de atormentá-lo, pois.

Não pode crer. Eu mesmo o inoculei dentro de mim. Ele vem se fortalecendo e talvez, em breve suponho, me rompa por inteiro e saia voando como uma mariposa, levando consigo meu antigo sorriso de criança.

Conto depois como ele veio parar em meus aposentos.

Preciso antes contar-te da idade dos dentes.

Lembro do gosto do vinho chileno
e de como se parece com Neruda

Um tanto de embriaguez
necessária a qualquer poesia

Um cataclisma qualquer
que não sacudia minha cama

Que não acordou os meus sonhos
e que me deixou só com saudades

Teu nome é uma saudade, sã

E insano sou nas manhãs
chilenas, que apenas, durmo

Um tango um tanto só
revira-se em meus lençóis

Que dito quando o dia levanta
e seu nome deita em meus lábios

O gosto da boca é o silêncio.