quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Repartição

Ia andando em frente apenas . Envolto em escuridão. Incontáveis passos persegui ainda uma luz que cintilava longe.
Cheguei e ceguei e conforme fui recobrando a ilusão dos olhos, construí um escritório ao meu redor. Era meio egotista: talvez eu até já estivesse ali.
Na portaria tentei identificar-me. Fui dispensado de tal tarefa por um porteiro que escondia o rosto. Ao meu ver:
_ Ah... é o senhor! Entre...entre..
Bom o porteiro. Pelo que vi um senhor já, de bigodes, camisa de botão, gravata com nó maldado, baixa estatura, um ar subalterno que a ele cabia muito bem.
Bom o porteiro. Se me obriga a dizer quem sou, já ali acabava a história, que não saberia tal resposta.
Por fim entrei.
Dois passos mais e o porteiro coçando a garganta advertiu-me:
_ Deve retirar sua senha senhor. A fila é aquela. E apontou-me uma direção qualquer.
Sem saber porque peguei um número, o 22, e dirigi-me ao fim da fila, a única que eu divisava por ali.
Contradizendo o meu número, uma centena de pessoas aguardava.
Comecei eu também a esperar sei lá o quê...
Estudando o local a minha melhor analogia de reconhecimento me trazia à mente uma repartição pública. E uma repartição pública estava lá.
Pessoas iam e vinham desordenadamente de um lado para o outro, sem parar, com papéis vários nas mãos. Conversavam e pareciam buscar soluções inatingíveis.
Outros arrastavam-se, senão pra lugar nenhum, pra uma aposentadoria magra e arredia.
O lugar era dividido em setores que cresciam através de vidros sem reflexo.
O Setor de Idéias estava ocupado por homens bebendo café expresso e agindo desesperadamente: não paravam de chegar novos formulários, notas musicais, poemas, planos...
Os homens suavam e pareciam correr contra o tempo. A todo segundo novas idéias surgiam e elas necessitavam catalogar, revisar, pôr em prática às vezes. Os computadores estavam a mil.
Ao lado ficava o Setor de Crenças, Fé e afins. Lá dentro um homem gordo tinha a boca aberta, os olhos fechados, o corpo largado numa poltrona confortável.
Permaneci olhando o homem gordo algum tempo. Mais precisamente até o instante em que o porteiro abandonou seu posto e veio até mim. Disse:
_ Esse está assim há uma eternidade. Não faz nada o inútil. Parece que morreu!
Não respondi absolutamente nada...
Porteiros têm a capacidade de serem inconvenientes, de falar a quem nada pergunta, como os velhos têm.
Vendo frustrada sua chateação voltou ao seu dever. Melhor ser grosseiro que ser capturado pela carência de assunto d'um porteiro.
Olhei novamente o homem gordo. Uma mosca saiu rodopiando brincalhona de dentro daquela boca escancarada cheia de dentes, esperando a ...
É. Estava morto deveras.
Deixei pra lá...
No setor financeiro uma senhora batia P-r-e-g-u-i-ç-o-s-a-m-e-n-t-e a máquina de datilografar. Seu cabelo era nitidamente feio e tingido.
Talvez não tão nitidamente: aquilo mais parecia uma peruca feita com pêlos de gato.
Por detrás dos óculos amarelados e grossos, ela fitou-me reprovativamente. Parou de bater à máquina, tomou do seu cigarro que descansava no cinzeiro ao seu lado.
Discou no telefone antigo, daqueles de roleta, aguardou um pouquinho
_ Alô?!
E pelo visto não ia parar mais de falar. Nunca mais. A mexeriqueira...
Será que era de mim que falava?
E daí também? Carente ali era o porteiro...
Olhei pra ele. Ele olhou pra mim.
Virei a cara. Melhor a cara que a noite inteira, a saber, a ouvir, do preço do leite; de seus quinze filhos pequenos e doentes, com melecas escorrendo dos narizes;
da esposa acabada pela idade e pela gravidez do décimo sexto ( que será dessa vez? Um menino? Uma menina? Um coelho?)
Nunca! Nunca fale com um porteiro! Nunca!
Só bom dia, boa tarde, boa noite, variando com o horário. Como não sabia que horas eram quando ali cheguei , nada disse.
Esqueçamos o pobre porteiro. Não que o conheça, ou que tenha dó dele, mas porteiros normalmente são pobres.
A fila todo esse tempo que fiquei a refletir permaneceu imóvel.
Não sabia o que fazia ali, mas não podia esperar pra sempre. Procurei um relógio. Há sempre um grande relógio redondo dependurado nas paredes das repartições públicas.
Ali não havia.
A divisão de Noção de Tempo & Espaço, entretanto, existia.
Uma bagunça. Papéis e mais papéis atulhavam-se. Não dava pra ver se existiam funcionários trabalhando. A papelada faltava pouco derramar seção afora.
Um garotinho saiu de lá não sei por onde. Ofegante e apressado ia passando por mim quando o inquiri sobre as horas. Não sabia.
Garotos... Sempre fazendo tudo errado. Como era inútil deixei-o ir.
A fila parada tinha a impressão que crescia à minha frente. Estiquei o pescoço, numa tentativa de decifrar tamanha estagnação. Não via sequer o fim daquele amontoado de gente.
Diabos! E eu perdendo tempo!
Mesmo sem consciência de quem se é, ou do que se está fazendo, ou do que se quer, tempo, meu caro, é dinheiro. E dinheiro não se joga fora.
No Setor de Vícios alguns funcionários limpavam a mesa sutilmente, jogando tudo ao chão. Enquanto um deles balançava os dados nas mãos, fechadas em formato de concha.
Um outro distribuía bebidas, ao mesmo tempo em que chupava um cigarro pendurado no canto da boca. Um outro coçava o nariz...
E a fila parada!
Até quando? Nem um passo sequer!
Quanto tempo já se havia transcorrido desde que ali chegara.
Não aguentava mais. Ia acender eu também um cigarro quando a coçadinha irritante de garganta do porteiro atingiu irritantemente meus ouvidos.
Olhei...
Apontou uma plaqueta velha: PROIBIDO FUMAR!
Ah! Isso era demais!
Guardei contrariado o meu cigarro, amassando-o no bolso da camisa.
Malditas sejam as repartições públicas!
Fui informar-me com o senhor que me precedia na fila.
Espanto foi tudo que consegui: o sujeito tinha a minha cara! As minhas roupas!
Fiquei imóvel por um momento. Se bem que já estava imóvel, há tempos indianos .
Sendo assim, corrijo-me : permaneci imóvel, somente.
A fila era composta por mim, repetido mil vezes!
Ora! Comigo nunca tive escrúpulo algum. Logo, tentei furar a fila. Todos me imitaram e instalou-se um caos.
Comecei a ficar confuso e impaciente de maneira insuportável.
Todos aqueles eus invadiam o guichê, que visionei pela primeira vez desde que ali chegara.
Foi com enorme esforço que atingi meu objetivo. Depois de cotoveladas e golpes desleais que me feriram o estômago, os rins e que me sangraram a boca.
Não apenas eu, mas os outros eus também, que eu revidei. Talvez tenha até mesmo começado a violência. Aqueles sujeitinhos detestáveis iguais a mim pareciam imitar todos os meus movimentos.
Depois dessa falta de respeito - que me era costumeira -, espanto maior ainda:
Deparei-me comigo mesmo do outro lado do balcão!
Por isso aquela fila não andava...
Incompetente!
Perguntei desesperado a mim mesmo:
_ Quem é você? Que lugar é esse? O que se está aguardando?
O bom porteiro veio me amparar no meu quase estado de choque e guiou-me até a Seção de Crises Existenciais.
Ele puxou-me uma cadeira, prometeu um cafezinho novo do Setor de Assuntos Gástricos e avisou-me que aquilo poderia demorar um pouquinho.
Dentro da mesma seção um eu que tinha criado raízes e outro envolto em teias de aranha fariam-me companhia, deduzi.
Bom porteiro aquele. Graças a deus não quis conversar, tornar tal espera ainda mais cansativa...
Uma tosse seca e única tossiu. Acho que veio do Setor de Crenças, Fé e afins. Não... Impossível... Uma mosca volteou a lâmpada nesse instante
...tschhh...
Encostou-se à lâmpada, a mosca idiota
De dentro da Seção de Crises Existenciais ainda consegui, quase que magicamente, a atenção do eu que estava no guichê:
_ Pode ao menos dizer-me que horas são? Perguntei-me.
Respondi-me com meu tom de voz mais desdenhoso:
_ Desculpe senhor. O Setor de Questionamentos Filosóficos fica no saguão superior. Apanhe o formulário roxo com bolinhas amarelas e suba as escadas à sua direita.


Na procuradoria, rapazes com caras de advogados recém saídos da prisão, procuravam.
Olhavam sobre e sob a mesa com olhar curioso. Olhos de galinha ciscando minhocas.

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